Samuel Firmino de Brito
Advogado especialista em Ciências Criminais (PUC/MG) e Direitos Fundamentais (IBCcrim/Coimbra)
Iniciando pela desistência voluntária, ora adequável apenas nos casos de tentativa imperfeita[1] ou inacabada, visto que o agente não efetua todos os atos executórios previamente definidos.
Nas definições de Nucci, há desistência voluntária quando:
Trata-se da desistência no prosseguimento dos atos executórios do crime, feita de modo voluntário, respondendo o agente somente pelo que já praticou. O abandono é voluntário quando ocorre independentemente de impedimentos obrigatórios; é voluntário quando o autor diz a si mesmo: não quero mas posso; não voluntário, quando diz a si mesmo: não posso, mas quero (cf. Frank, citado por Welzel, Derecho penal alemán, p. 235)” (2013, p. 200).
Nesse ínterim, o instituto em análise é incompatível com a teoria do assentimento[2], sendo ilógico cogitar que o indivíduo “desista de assumir um risco”. Dentro desta concepção, o risco refere-se a uma espécie de perigo ou ameaça ao bem jurídico tutelado, características de delitos formais[3], que não admitem a forma tentada.
Sob este prisma, fazemos a seguinte indagação, há como um ser desistir de um risco? Haja vista que riscos não possuem certezas, portanto, não há de cogitarmos a existência de atos preparatórios[4]. Pois, na desistência voluntária o indivíduo não quer mais a empreitada delituosa conforme havia pretendido pelos seus aspectos subjetivos.
A própria hermenêutica declarativa do dispositivo elencado no codex possibilita tal conclusão, haja vista que quem desiste, desiste de algo – teoria finalista (vontade)[5]; portanto, não há de desistir de um risco, diante a probabilidade de insucesso pela incerteza e eventualidade – teoria do assentimento (risco).
Em contrapartida, o arrependimento eficaz não traduz tal problemática, eis que apenas ocorrerá na tentativa perfeita[6], em vista que o autor exterioriza todos os atos executórios, demonstrando sua vontade[7].
Assim, conceitua Nucci:
Trata-se da desistência que ocorre entre o término dos atos executórios e a consumação. O agente, nesse caso, já fez tudo o que podia para atingir o resultado, mas resolve interferir para evitar a sua concretização. Exemplo: o autor ministra veneno a B; os atos executórios estão concluídos; se nada fizer para impedir o resultado, a vítima morrerá. Por isso, o autor deve agir, aplicando o antídoto para fazer cessar os efeitos do que ele mesmo causou” (2013, p. 201).
Sob este aspecto, o arrependimento eficaz não é incompatível com o dolo eventual[8], pois não há de cogitarmos a existência de um critério subjetivo, mas que o autor agiu diverso aos atos executórios já realizados, evitando a consumação; isto é, embora riscos sejam incertos, estes podem se concretizar. Dentro desta situação hipotética, o legislador estabeleceu o arrependimento eficaz, uma ponte de ouro, possibilitando a remição da conduta imprudente, evitando o resultado consumativo.
A título de exemplo, o autor dispara contra X (dolo direto[9]) que não vem a falecer, pois foi socorrido por terceiros; contudo, o disparo vem atravessar o desafeto, atingindo Y pela alta potencialidade do objeto material (arma), uma espécie de risco, ora concretizado (dolo eventual[10]); porém, em ato contínuo, o autor socorre apenas Y, evitando a morte. Desta forma, o autor deverá ser imputado pela tentativa de homicídio por X (teoria objetiva-individual[11]), e enquanto a Y, este responderá apenas pelos atos praticados, à título de lesões corporais (teoria objetiva-material[12]).
Diante as indagações aqui elencadas, conclui Estefam que a distinção entre a desistência voluntária e o arrependimento eficaz:
A desistência pressupõe tenha o agente meios para prosseguir na execução, ou seja, ele ainda não esgotou o iter criminis posto à sua disposição (ex.: sua arma possui outros projeteis, mas ele desiste de dispará-los). No arrependimento, subentende-se que o sujeito já tenha esgotado todos os meios disponíveis e que, após terminar todos os atos executórios (mas sem consumar o fato), pratica alguma conduta positiva, tendente a evitar a consumação (ex.: sujeito descarregou sua arma e, diante da vítima agonizando, arrepende-se e a socorre). (2010, p. 190, grifos do autor).
Embora sejam distintos, a redação final do dispositivo legal “só responde pelos atos já praticados”, possibilita a ambos os institutos a mesma consequência, ora denominada pela doutrina como tentativa qualificada.
Nesse sentido, ressalta Zaffaroni e Pierangeli:
É mister uma referência especial à hipótese final desse artigo para sublinhar, de forma clara, os efeitos que têm estes casos, conhecidos como de tentativa qualificada, isto é, quanto na tentativa resultam consumados atos que constituem delitos por si mesmos. Assim, aquele que desfere duas ou três punhaladas em sua vítima, desistindo de matá-la porque se arrepende de sua ação; quem desiste de consumar o furto, depois de arrombar a porta para entrar na casa; aquele que desiste da extorsão, mas já efetuou a ameaça etc. Em todos estes casos, desaparece a pena da tentativa – que é a única que desaparece – mas persiste a pena dos delitos que foram consumados em seu curso. Em outras palavras, o que fica impune é a tentativa em si mesma, mas não os delitos consumados em seu curso, cuja tipicidade sofria interferência somente por efeito da punibilidade da tentativa, mas que ressurge com o desaparecimento desta (2015, p. 636, grifos do autor).
No entanto, há distinção entre arrependimento eficaz e arrependimento posterior (CP, art. 16[13]). Este último sendo é uma espécie de causa de redução de pena obrigatória criada na Reforma da Parte Geral de 1984, aplicável aos delitos sem violência ou grave ameaça à pessoa, desde que haja a reparação ou restituição anterior ao recebimento da denúncia ou da queixa crime por ato voluntário do agente.
Acerca deste instituto, ressalta Zaffaroni e Pierangeli:
Para o reconhecimento do privilégio, que constitui uma “ponte de prata” outorgada pela lei, a reparação deve ser completa, pessoal, e voluntária. A reparação completa deve abranger, além daquilo que a vítima perdeu, também o que deixou de lucrar, incluindo-se, pois, os prejuízos efetivos e os lucros cessantes, tal como estabelecem os arts. 402 e 403 do CC/2002. Quanto à restituição, deve ser integral, não sendo suficiente uma restituição parcial, ou, por outras palavras, de um ou de alguns objetos materiais, que pode ser considerada apenas para fins do art. 59 do CP; portanto, uma atenuante genérica. Também deve ser pessoal e voluntária. Não ocorrerá a diminuição quando a reparação ocorrer por coação física ou moral, quando o agente foi apreendida em diligência policial (Mirabete). Não se reclama a espontaneidade do ato do agente, bastando que o mesmo seja voluntário. (2015, p. 635, grifos do autor).
Cabe frisar, o arrependimento posterior apenas realizado por um dos corréus, beneficia-se os coautores e participes, com fulcro no artigo 30 do codex[14].
Conquanto, há delitos que a reparação do dano acarretará a causa de extinção da punibilidade, como no caso de peculato culposo; ou excluir a possibilidade da ação penal, conforme entendimento sedimentado pela Súmula 554 do STF: “o pagamento de cheque emitido sem provisão de fundos, após o recebimento da denúncia, não obsta ao prosseguimento da ação penal”.
Elucidando o tema em debate, disserta Mirabete e Fabbrini:
O arrependimento posterior não repousa só inexistência de prejuízo, mas tem por fundamento indissociável a exteriorização do estado psíquico do agente, ou seja, o próprio arrependimento que identifica a causa de redução da pena. É indispensável se colha a restituição da res ou reparação do dano uma evolução positiva na vontade do agente, o repensar da atividade delituosa. Por isso somente a restituição ou reparação pelo agente e não por terceiros acarreta a redução da pena” (2015, p. 151, grifos do autor).
Por fim, importantíssimo mencionar que caso a reparação do dano ocorra de forma diversa da voluntária, como – coação (física/moral), obrigação judicial ou apreensão, o indivíduo não terá direito a beneficie do instituto em análise.
Notas:
[1] Leia o artigo: “Da Tentativa Imperfeita” publicado em 15.10.2020.
[2] Leia o artigo: “Teoria do Assentimento” publicado em 23.07.2020.
[3] Leia o artigo: “O Direito e a Conduta” publicado em 18.06.2020.
[4] Leia o artigo: “Iter Criminis” publicado em 17.09.2020.
[5] Leia o artigo: “Teoria da Vontade” publicado em 16.07.2020.
[6] Leia: “Tentativa Perfeita” publicado em 09.10.2020.
[7] Leia o artigo: “O Querer e a Vontade” publicado em 14.05.2020.
[8] Leia o artigo: “Dolo Indireto” publicado em 09.07.2020.
[9] Leia o artigo: “Dolo Direto” publicado em 02.07.2020.
[10] Vide nota 07.
[11] Leia o artigo: “A Tentativa sob a Ótica do Sistema Finalista” publicado em 01.10.2020.
[12] Idem.
[13] Art. 16 – Nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, reparado o dano ou restituída a coisa, até o recebimento da denúncia ou da queixa, por ato voluntário do agente, a pena será reduzida de um a dois terços.
[14] Art. 30 – Não se comunicam as circunstâncias e as condições de caráter pessoal, salvo quando elementares do crime.
Referências:
BRITO. Samuel Firmino de. A incompatibilidade da tentativa na teoria do assentimento sob a ótica do sistema finalista de Hans Welzel. Monografia. Orientadora: Júlia Mara Rodrigues Pimentel. Manhuaçu/MG: Faculdade Doctum, 2017.
ESTEFAM, André. Direito Penal: Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2010.
NUCCI. Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 13. ed. rev., atual e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. 11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.