Samuel Firmino de Brito
Advogado especialista em Ciências Criminais (PUC/MG) e Direitos Fundamentais (IBCcrim/Coimbra)
Em consonância com os alicerces traçado em nossas publicações até aqui, o dolo indireto subdivide-se em dolo alternativo, cuja animus do agente não é preciso (previsibilidade), possibilitando dois ou mais resultados distintos; enquanto no dolo eventual o agente não possui vontade de produzir o resultado, mas assume o risco de fazê-lo.
Eis os ensinamentos de Nucci:
Significa que o agente quer, indiferentemente, um resultado ou outro. Não se trata, como alerta Maurach, de uma forma independente de dolo, mas sim de sua aplicação das regras pertinentes à congruência dos tipos objetivos e subjetivos (Derecho penal – parte geral, p. 285). Cita, como exemplo, o caso do ladrão que encontra uma carteira, envolta de um pano, na praia. Não sabe se foi deixada ali por um banhista que foi à água ou se alguém a esqueceu e foi para a casa. Leva-a, de todo modo, somente a análise do caso concreta irá determinar se houve furto (art. 155, CP) ou apropriação (art. 169, parágrafo único, II, CP)”. (2013, p. 220, grifos do autor).
Todavia, no tocante ao dolo eventual, a corrente majoritária entende que o legislador o equiparou ao dolo direto, diante a redação do artigo 18, inciso I do codex[1]. Assim, de forma equivocada –, data vênia, mas compreendem a equivalência do querer com a vontade[2], atribuindo ao assumir o risco de produzir resultado uma espécie de querer volitivo, como vontade minimizada.
Por exemplo, a definição de dolo por Prado:
Compreende o dolo, como face subjetiva do tipo, os elementos cognitivos ou intelectual – consciência atual da realização dos elementos objetivos do tipo (conhecimento da ação típica, representação fática) -, e volitivo, intencional ou emocional – vontade de realização dos elementos objetivos do tipo (vontade intencional, vontade reitora da conduta, finalidade típica). Isso significa o agasalho de uma concepção dualista: dolo exige conhecimento (saber) e vontade (querer). (et al, 2015, p. 296, grifos do autor).
No entanto, embora majoritária, tal entendimento não soa pacificamente. Por exemplo, ao ingressar na graduação do curso de direito, inúmeros alunos expressam o querer em se tornar Juízes. Porém, não basta apenas o querer, mas ter vontade, isto é, anos de estudos destinados a essa finalidade, ora concretizada no ato da posse.
Contudo, pode o mesmo aluno, pode querer magistratura ou promotoria, e qualquer dos cargos que obtiver a posse, atingirá sua finalidade[3], eis que a vontade era destinada a um cargo deste nível, não importando qual (dolo alternativo).
Outrossim, embora o exemplo não esteja na seara criminal, a distinção entre o querer e a vontade é nítida; em consonância com a teoria realista do conhecimento, apenas os atos de vontade alteram a matéria do mundo. Por estas razões, é fundamental a abordagem das concepções filosóficas acerca destes institutos subjetivos, para uma interpretação sob a ótica finalista ao caso concreto.
Desta forma, em relação ao dolo eventual, ressalta Jeschek, que “significa que o autor considera seriamente como possível a realização do tipo legal e se conforma com ela” (apud GRECO, 2013, fl. 192).
Compartilhando dessa visão, preleciona Muñoz:
No dolo eventual, o sujeito representa o resultado como de produção provável e, embora não queira produzi-lo, continua agindo e admitindo a sua eventual produção. O sujeito não quer o resultado, mas consta com ele, admite sua produção, assume o risco etc. (apud GRECO, 2013, fl. 192).
No entanto, embora o agente admita a produção do resultado, não há que se confundir dolo eventual com culpa consciente; embora o agente presuma o resultado em ambos, na espécie de culpa, este confia em sua habilidade, porém, o produz.
Estefam distingue os institutos da seguinte forma:
Não se pode confundir culpa consciente com dolo eventual. Em ambos, o agente prevê o resultado, mas não deseja que ele ocorra; porém, na culpa consciente, ele tenta evitá-lo, enquanto no dolo eventual mostra-se indiferente quanto à sua ocorrência, não tentando impedi-lo. Assim, por exemplo, se o agente dirige um veículo perigosamente em alta velocidade e vê um pedestre atravessando a rua, tentando, sem êxito, evitar o atropelamento, teremos culpa consciente. Se, nas mesmas circunstâncias, em vez de buscar evitar o acidente, o motorista continua com sua direção imprudente, pensando ‘se morrer, morreu’, haverá dolo eventual. (2010, p. 203, grifos do autor).
A distinção é de severa dificuldade, pois, conforme salienta Bustos Ramírez e Hormazábal Malarée: “o dolo eventual não passa de uma espécie de culpa com representação, punida mais severamente” (apud GRECO, 2013, fl. 192).
Neste sentido, sob a ótica finalista faz-se necessário a análise da intensidade da vontade no dolo ao caso concreto, à luz do princípio norteador do Direito Penal, o favor rei.
Notas:
[1] Art. 18 – Diz-se o crime:
I – Doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo.
[2] Leia o artigo: “O Querer e a Vontade” publicado em 14.05.2020.
[3] Leia o artigo: “Vontade e Finalidade” publicado em 21.05.2020.
Referências:
BRITO. Samuel Firmino de. A incompatibilidade da tentativa na teoria do assentimento sob a ótica do sistema finalista de Hans Welzel. Monografia. Orientadora: Júlia Mara Rodrigues Pimentel. Manhuaçu/MG: Faculdade Doctum, 2017.
ESTEFAM, André. Direito Penal: Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2010.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Geral. 15. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2013. v.1.
NUCCI. Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 13. ed. rev., atual e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.