O Direito e a Conduta

Samuel Firmino de Brito

Advogado especialista em Ciências Criminais (PUC/MG) e Direitos Fundamentais (IBCcrim/Coimbra)

O princípio da nullum crimen sine conducta expressa o raciocínio de que é incompressível que haja delito por outro meio, se não através da conduta. Nesse sentido, ressalta Zaffaroni e Pierangeli, que se o direito admitir regular algo diverso de conduta[1] para fins de crime, estará rompendo o atual horizonte dessa ciência (2015, p. 370-371).

Nesse sentido, preleciona Bitencourt:

[…] O Direito Penal limita-se a regular a atividade humana (parte dela), uma vez que os demais processos naturais não podem ser objeto de regulação pelo Direito, porque são forças ou energias cegas, enquanto a atividade humana é uma energia inteligente. (2011, p. 287, grifos do autor).

Contudo, não basta simplesmente penalizar aqueles que agem de determinadas formas sem antes lhe concederem um julgamento justo. Dessa forma, o critério para avaliação entre a conduta do agente e o resultado, denominasse, relação de causalidade, dentro das concepções jurídicas estabelecidas no ordenamento jurídico pátrio.

Outrossim, a previsão da causalidade pertence à conduta vinculada a finalidade[2] externada pelo ato realizado pelo agente; enquanto o nexo de causalidade é algo passado, valorado após o fato, sendo que toda ação possui a junção de ambos institutos. Deste modo, Zaffaroni e Pierangeli atribui o exemplo a conduta de lançar uma bomba em Hiroshima e distinta do nexo de causalidade e do resultado, isto é, Hiroshima arrasada, não pertence à ação de lançar uma bomba, mas ao seu resultado (2015, p. 378).

Aduz o artigo 13 do CP que “o resultado, de que depende a existência de um crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem o qual o resultado não teria ocorrido”. Contudo, é possível questionar-se no que consiste o resultado?

Nas lições de Fabbrini Mirabete:

[…] segundo o conceito naturalístico, é ele a modificação no mundo exterior provocado pelo comportamento humano voluntário. É “o efeito natural da ação que configura a conduta típica, ou seja, o fato tipicamente relevante produzido no mundo exterior pelo movimento corpóreo do agente e a ele ligado por relação de causalidade. É a morte da vítima (no homicídio), a destruição, inutilização ou deterioração da coisa (no dano). (2015, p. 94, grifos do autor).

Além do resultado naturalístico supramencionado, cujo resultado seja por dano ou lesão, há também os crimes de perigo, conforme as lições de Estefam:

Estes se subdividem em crimes de perigo concreto ou real (o risco deve ser demonstrado) e de perigo abstrato ou presumido (a prática da ação ou omissão gera uma presunção absoluta de que o bem jurídico sofreu um risco). (2010, p. 184, grifos do autor).

A título de exemplos temos o perigo de contágio venéreo[3] e perigo à vida ou saúde de outrem[4]. Sendo questionada a natureza dos delitos de perigo por parte da doutrina por violação ao princípio da ofensividade (nullum crime sine injuria). Em sentido contrário, sustenta Capez que os delitos de perigo traçam uma legítima estratégia do ordenamento jurídico em prevenir a existências de ações ofensivas aos bens jurídicos em seu estado embrionário (apud ESTEFAM, 2010, fl. 184).

Dentro desta concepção, há a análise do momento consumativo do delito, sendo os delitos classificados como crimes materiais, culposos, formais, habituais, permanentes e omissivos, conforme conceitua Bittecourt:

Nos crimes materiais, a consumação ocorre com o evento ou resultado. Assim, consuma-se o homicídio com a morte da vítima. Nos crimes culposos, só há consumação com o resultado naturalístico. Se houver inobservância do dever objetivo de cuidado, mas o evento não se realizar, não haverá crime. Nos crimes formais, e de mera conduta a consumação ocorre com a própria ação, já que não se exige resultado naturalístico. Nos crimes habituais a consumação somente existirá quando houve a reiteração de atos, com habitualidade, já que cada um deles, isoladamente, constitui um indiferente penal. Nos crimes permanentes, a consumação se protrai no tempo, desde o instante em que nele se reúnem os seus elementos até que cesse o comportamento do agente. […] Nos crimes omissivos, a consumação ocorre no local e no momento em que o sujeito ativo deveria agir e não o fez. (2011, p. 465, grifos do autor).

Assim, a análise do nexo de causalidade deriva com a classificação do delito, perante a teoria da conditio sine qua non, acolhida pelo estatuto repressor. Todavia, muito se discute o regressus ad infinitium acerca desta teoria, conforme preleciona Lazarini:

Alerta para o regressus ad infinitum: diante a teoria da teoria da equivalência dos antecedentes, uma pergunta se impõe: não poderia haver uma responsabilização muito ampla, à medida que são alcançados todos os fatos anteriores ao crime? Os pais não poderiam responder pelos crimes praticados pelo filho? Afinal, sem aqueles este não existiria e, não existindo, jamais poderia ter praticado o crime. Nessa linha de raciocínio, não se chegaria a um regressus ad infinitum? A resposta é não, pois, como já dissemos, a responsabilidade penal exige, além do mero nexo causal, nexo normativo. A teoria da equivalência dos antecedentes situa-se no plano exclusivamente físico, resultante da aplicação natural de causa e efeito. (2016, p. 69, grifos do autor).

Sob este aspecto, Greco elenca o processo hipotético de eliminação de Thyrén, que consiste em um exercício mental pensando no fato qual possa ser a causa do resultado, suprindo-o em uma cadeia causal; e ao fim, como consequência dessa supressão, o resultado se modifica, é sinal que o fato suprimido mentalmente deve ser considerado como a causa do resultado (2013, p. 220). Continua o autor nas lições de Heleno Fragoso, “causa é todo antecedente que não pode ser suprimido in mente, sem afetar o resultado” (2013, p. 220).

Como o conceito de causa é amplo e vago, o legislador procurou estabelecer limites do alcance da teoria da conditio site qua non, cuja relação de causalidade deve ser valorada conjuntamente com o vínculo subjetivo do agente.

Nesse sentido, ressalta Bitencourt:

Causalidade relevante para o Direito Penal é aquela que pode ser prevista, isto é, aquela que é previsível, que pode ser mentalmente antecipada pelo agente. Em outros temos, a cadeia causal, aparentemente infinita sob a ótica puramente naturalística, será sempre limitada pelo dolo ou pela culpa. (2011, p. 290, grifos do autor).

Destarte, as causas são avaliadas de acordo com o grau de intensidade para aferição do resultado, denominadas como concausas[5]. Quanto às causas independentes, são aquelas cujo resultado ocorreria independentemente da conduta do agente, razão pela qual afasta o nexo de causalidade, como ensina Estefam:

A causas absolutamente independentes da conduta dividem-se em preexistentes ou anteriores (quando anteriores à conduta), concomitantes ou simultâneas (quando ocorrem ao mesmo tempo) e posteriores ou supervenientes (quando se verificam após a conduta praticada). A título de ilustração, citam-se alguns exemplos: a) efetuar disparos de arma de fogo, com intenção homicida, em pessoa que falecera em minutos antes (a morte anterior configura causa preexistentes); b) atirar em pessoa que, no exato momento do tiro, sofre ataque cardíaco fulminante e que não guarda relação alguma com o disparo (o infarto é a causa concomitante); c) ministrar veneno na comida da vítima, que, antes que a peçonha faça efeito, vem a ser atropelada (causa superveniente, nesse caso, o agente só responde pelos atos praticados, ou seja, por tentativa de homicídio). (2010, p. 190).

Dessa forma, avaliam-se os resultados em consonância com a vontade do agente externada pela conduta, igual raciocínio se faz em face das causas relativamente independentes, porém, estas não excluem o nexo de causalidade.

Acerca do tema em análise, concretiza Mirabete e Fabbrini:

Não se elimina uma relação de causalidade pela existência de uma concausa (preexistente, concomitante ou superveniente). A concausa é outra, que, ligada à primeira, concorre para o resultado. Assim, a possibilidade da existência de causas concorrentes para o resultado, preexistentes ou concomitantes com o do agente, nunca exclui a imputação, já que não há o rompimento da cadeia causal entre a conduta dele e o resultado. É inegável o nexo causal na morte: por hemorragia de uma lesão leve por ser vítima hemofílica; por complicações surgidas no tratamento da vítima de atropelamento em virtude de apressar condição diabéticas; por insuficiências cardíaca decorrente de violenta emoção seguida de lesões corporais; por ser hipertensa e estar vítima em adiantado estado de gravidez por ocasião da agressão etc. A questão ligada ao conhecimento ou não do agente a respeito das condições particulares da vítima é resolvida quando da apreciação do elemento subjetivo do crime. (2015, p. 95-96, grifos do autor).

Embora haja distinção, importantíssimo observa-se que o agente delituoso responderá por sua empreitada criminosa na medida de sua culpabilidade, diante as circunstâncias fáticas em cada caso concreto, conforme sedimenta o princípio da individualização da pena. Nesse liame, aduz Greco que o primeiro momento que o instituto aparece, é quando o legislador faz a seleção das condutas[6] que integram ao Direito Penal (2013, p. 69), de igual modo, o segundo momento será na análise da causalidade.

Destarte, cabe as ciências criminais elencar critérios para análise da conduta humana, à luz do sistema finalista, abordando aos aspectos subjetivos e objetivos, diante a ratio essendi, para promover a segurança jurídica sem violação do pensamento de alguém; pois, é inegável que punir é preciso, mas punir além do necessário, é arbitrário.

Notas:

[1] Leia o artigo: “A Conduta” publicado em 04.06.2020.

[2] Leia o artigo: “Vontade e Finalidade” publicado em 21.05.2020.

[3] ”Art. 130. Expor alguém, por meio de relações sexuais ou qualquer ato libidinoso, a contágio de moléstia venérea, de que sabe ou deve saber que está contaminado:

Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa”.

[4] “Art. 132. Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente:

Pena – detenção, de três meses a um ano, se o fato não constitui crime mais grave”.

[5] É o conjunto de fatores preexistentes ou supervenientes, suscetíveis de modificar o curso natural do resultado, fatores esses que o agente desconhecia ou não podia evitar.

[6] Leia o artigo: “O Tipo Penal” publicado em 02.04.2020.

Referências:

BITENCOURT. César Roberto. Tratando de Direito Penal: Parte Geral. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

BRITO. Samuel Firmino de. A incompatibilidade da tentativa na teoria do assentimento sob a ótica do sistema finalista de Hans Welzel. Monografia. Orientadora: Júlia Mara Rodrigues Pimentel. Manhuaçu/MG: Faculdade Doctum, 2017.

ESTEFAM, André. Direito Penal: Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2010.

FABBRINI, Renato N; MIRABENTE, Júlio Fabbrini. Manual de Direito Penal. 31. ed. São Paulo: Atlas, 2015.

LAZARINI. Pedro. Código penal comentado e leis penais especiais comentadas. 5. ed. São Paulo: Cronus, 2016.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. 11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.